Teoremas da Incompletude 
Artistas: Amanda Mei | Camila Bardehle | Mariana Weigand
Curadoria de Ícaro Ferraz Vidal Junior
de 15/08/2024 à 26/10/2024 
WG GALERIA
Rua Araújo, 154 - mezanino - São Paulo

A aproximação entre as obras de Amanda Mei, Camila Bardehle e Mariana Weigand e o desejo de dar nome ao que eu intuía atravessar essas três poéticas me levaram ao artigo "Sobre as Proposições Indecidíveis dos Principia Mathematica e Sistemas Correlatos", de Kurt Gödel ¹. Publicada em 1931, a obra produziu um solavanco na história da matemática. Nela, Gödel demonstrou os teoremas que dão título a essa mostra e que inscreveram a incompletude e a inconsistência no cerne da aritmética. A partir de então, sabe-se que há teoremas que são verdadeiros, mas não podem ser provados e teoremas que são verdadeiros e falsos ao mesmo tempo. O vertiginoso percurso da demonstração de Gödel não cabe aqui, mas a beleza de seu gesto talvez forneça uma mediação interessante para o encontro com os trabalhos de Mei, Bardehle e Weigand. 
Gödel não foi o único, no século XX, a frustrar a esperança sedimentada ao longo do século precedente de um conhecimento ao qual nada faltasse ou escapasse. A incompletude passou a ser compreendida como um aspecto constituinte de muitos fenômenos e não como algo a ser superado através do aprimoramento das ciências ou recalcado por uma obra de arte total (gesamtkunstwerk). A exposição Teoremas da incompletude reúne três poéticas que herdam, em alguma medida, esse legado. A questão da impossibilidade da completude é desdobrada diferentemente por cada uma das artistas, que a circunscrevem a diferentes ordens de grandeza: Mariana Weigand trabalha sobre o terreno íntimo e afetivo da memória; Camila Badehle é uma arqueóloga da paisagem; Amanda Mei, uma cosmonauta entre fragmentos de corpos celestes. O íntimo e o cósmico alinham-se aqui através do elogio do fragmento. 
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A produção de Mariana Weigand desdobra-se nos campos da arte têxtil, da aquarela e do bordado. Estas linguagens permitem à artista construir obras que ancoram materialmente suas modulações afetivas e imaginação narrativa. Os tecidos operam na poética de Weigand tanto como suporte – espaço de negociação entre a intencionalidade da artista e a fluidez da aquarela –, quanto como fragmentos de histórias sobre as quais a artista nos convida a especular. As obras da série Amarras e a inédita Intersecção corpo memória são representativas da linguagem que a artista vem desenvolvendo na aquarela e de sua polivalência, uma vez que na referida série a pintura torna-se o fundo de uma cena bordada, enquanto na segunda obra ela convive com a linha de forma imanente, em um sistema de camadas e transparências. Nos Relicários e em Amarração, Fissuras e Fusões o tecido adquire protagonismo e se torna elemento compositivo, passando ao primeiro plano. Dois dos Relicários que apresentamos nascem de uma coleção de retalhos carregada de memórias e afetos da própria artista; um terceiro Relicário e as obras Amarração, Fissuras e Fusões têm origem em um vestido de noiva presenteado à artista e por ela decomposto em uma espécie de modelagem às avessas, saturada de simbolismo. 
O procedimento empregado por Weigand na lida com o vestido de noiva dialoga intimamente com o gesto com que Camila Bardehle engendra seu projeto intitulado Deslocar a ruína. Trabalhando a partir de diferentes linguagens – performance, vídeo, fotografia, instalação, aquarela –, Bardehle tem investigado as interações entre o espaço construído e a natureza, a partir de territórios específicos. Do referido projeto, apresentamos um vídeo no qual vemos a artista percorrer as ruas de São Paulo traçando, sobre folhas de papel, o contorno de fragmentos de concreto coletados nas calçadas. O inventário das formas resultantes dessa arqueologia ficcional se desdobra em uma segunda obra da série, produzida em papel, na qual as formas dos fragmentos inventariados são recortadas, resultando em uma sobreposição de espaços vazios que condensa as tensões entre presença e ausência, entre passado e futuro, deslocando, efetiva e vertiginosamente, as ruínas para o espaço da galeria. Fragmentos de ruínas abundam nas caçambas que coletam os entulhos da nossa urbanidade. Tudo que é sólido se desmancha no ar reúne um conjunto desses resíduos da construção civil e o faz flutuar no espaço expositivo, formalizando material e espacialmente as contradições da frase que dá título à obra e alude a uma famosa passagem do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Por fim, um conjunto de aquarelas representando fragmentos de rochas que compõem a brita, agregado muito utilizado na construção civil, integra a seleção de obras de Bardehle.
Se na obra de Camila os fragmentos de rocha, ao remontarem à brita, alegorizam a ação humana na construção do espaço, na obra de Amanda Mei as formas rochosas parecem ser dotadas de uma agência cósmica. Com uma prática na qual predominam as investigações nos campos da pintura e da instalação, Mei desenvolveu uma poética visual inconfundível, marcada pela predominância de tons azulados e pela construção de imagens que poderiam fazer referência ao nosso planeta ou a algum outro corpo celeste. A referida agência cósmica fica patente nos enigmáticos Meteoros da artista, esculturas confeccionadas em papelão, pintadas em uma paleta que oscila entre o cinza e o azul e instaladas no espaço como se recém-caídas do céu. A pintura Luna, representação circular de um corpo celeste, sugere uma integridade que as demais obras da artista friccionam: afinal, de onde se desprendem os Meteoros? Juntas, as obras Luna e Meteoro embaralham nosso entendimento acerca das relações entre a parte e o todo através de um salto para a escala cósmica e de uma aposta na entropia. Em relação a este último aspecto, destaca-se a série de pinturas Encontro marcado que, não apenas representa pictoricamente uma série de explosões mas o faz sobre um fundo de cor sólida, impressa digitalmente sobre o papel. À promessa de precisão cromática assegurada tecnologicamente, a artista sobrepõe a artesania da cor e a gestualidade explosiva da pintura. Um conjunto inédito de gravuras (relevo seco e colagem sobre papel) junta-se a esta seleção, projetando sobre a tradição da paisagem, outro campo caro à Mei, as problemáticas fronteiras que dividem as partes e o todo.   
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Os retalhos, entulhos e meteoros com que Mariana Weigand, Camila Bardehle e Amanda Mei constroem suas poéticas não parecem apontar para um desejo de reconstituição de uma totalidade supostamente perdida. A dimensão parcial e fragmentária da existência inscreve-se de forma inequívoca nesses elementos que, ademais, nos lembram que nós somos – subjetiva, política e cosmicamente – o resultado de tudo o que perdemos. Que sentido podemos dar à criação frente à nossa inexorável condenação à incompletude? Talvez, as obras reunidas em Teoremas da incompletude forneçam algumas pistas.     
 ¹ Gödel, Kurt. On formally undecidable propositions of “Principia mathematica” and related systems. Nova York: Dover Publications, 1992.
Ícaro Ferraz Vidal Junior
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